Matéria escrita para o jornal
A Verdade, Maputo
Surpresa boa ler a matéria, apesar de algumas informações improcedentes talvez em razão das circunstâncias em que a entrevista foi feita, em plena feira do livro. Mesmo assim, vale a pena ler.
Incluí fotos tiradas durante minha estada em Maputo, no lugar das colocadas pelo jornalista e tomei a liberdade de fazer mínimas correções, muito importantes para o coletivo.
Fica minha gratidão a Inocêncio, por registrar um momento tão precioso em minha vida.
Uma artista plástica catadora num país encantador Escrito por Inocêncio Albino Quinta, 03 Maio 2012 15:05
Nos dias que correm, a artista plástica brasileira, Lúcia Rosa, orgulha-se não somente devido à possibilidade que tem de difundir a literatura nos grupos sociais mais desfavorecidos mas, acima de tudo, por poder ajudá-los a melhorar a sua condição de vida. No seu país, onde existem mais de 30 mil catadores, Rosa dirige a editora cartonera Dulcineia Catadora. A iniciativa não pára de evoluir...
Na semana em que se realizou o Primeiro Encontro Africano do Livro de Cartão e a III Feira do Livro de Maputo, a artista plástica brasileira Lúcia Rosa participou em inúmeras oficinas de criação em Maputo. Na ocasião, ela teve a oportunidade de conhecer gente, lugares, formas de vida, entre outros aspectos concernentes ao “País da Marrabenta”. Na verdade, Lúcia Rosa visitou Moçambique – um país sobre o qual a história universal considera possuir um passado comum com Brasil, na medida em que a maior parte dos afro-brasileiros possuem um antepassado comum com diversos povos africanos como o angolano, por exemplo, o nigeriano e o moçambicano, por exemplo – em Abril passado. A artista veio em representação à Dulcinéia Catadora que é uma editora cartonera – ou seja, que produz livro artesanalmente e a partir de material reciclado como o papelão para produzir a capa – que foi fundada no ano 2007. Nos poucos dias em que permaneceu na Cidade das Acácias, a pintora passou a semana a realizar “várias oficinas de criação e produção de livros em diferentes locais da cidade de Maputo – com destaque para os grupos da Faculdade de Letras e Ciências Sociais (FLCS) e da Kutsemba Cartão – sobre as quais sentimos que foram muito produtivas”. De qualquer modo, vale a pena referir que o primeiro grupo de cartoneras não é brasileiro, como se poderia pensar. Mas surgiu no ano 2003 na Argentina. No mesmo período tal colectividade foi convidada para a Bienal de Arte de São Paulo – que é um grande evento artístico da América Latina – para realizar mostras da sua produção livresca. Em tal âmbito, tencionando-se fazer uma oficina-instalação com catadores (que de acordo com a explicação de Lúcia Rosa são pessoas que colectam material descartado nas ruas que pode ser utilizado na confecção do livro) de papel, os argentinos intercambiaram conhecimentos e saberes com o grupo brasileiro. A experiência ganhou popularidade na América Latina. Afinal, a partir de tal invento, a produção da Bienal de São Paulo entrou em contacto com Lúcia para que ela instalasse uma oficina de produção de livros envolvendo filhos de catadores. A referida instalação funcionou durante um período de dois meses consecutivos. Foram assim criadas condições para que se gerasse uma rotina de trabalho, de tal sorte que quando “os argentinos regressaram para o seu país, nós montámos uma estrutura constituída por jovens e adolescentes para produzir continuamente os livros”, refere Rosa.
Beneficiar o cidadão desfavorecido No Brasil, onde provavelmente existe a maior parte dos catadores, a comunidade dos produtores do livro de cartão aumenta continuamente. Por isso é difícil revelar o número exacto de catadores. Facto, porém, é que Lúcia Rosa revela que só na cidade de São Paulo “existem mais de 30 mil catadores que geralmente são constituídos por pessoas socialmente desfavorecidas e desempregadas que ocupam o seu tempo para realizarem a actividade aludida”. Os catadores brasileiros estão organizados num movimento associativo ao qual chamam Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis. O movimento articula cooperativas em todo o país para que os catadores possam trabalhar e gerar renda para as suas famílias de forma independente. Os cidadãos brasileiros mais desfavorecidos filiados no referido movimento têm realizado reivindicações perante o Governo do seu país, exigindo melhores condições de vida como, por exemplo, apoio em termos de residências, de acesso aos serviços de educação e de saúde. Por isso, está-se diante de um activismo social muito importante para os grupos socialmente desfavorecidos na América do sul. Um denominador comum no trabalho da produção do livro de cartão em todo o mundo é a intenção de “garantir que os mesmos sejam acessíveis ao povo”. Como tal, Lúcia Rosa considera “a acessibilidade dos livros é um conceito muito básico nas editoras cartoneras. Isso é muito importante porque possibilita que as famílias de catadores (também) possam aceder à literatura produzida naqueles moldes”.
Somos auto-sustentáveis
Além da fraca divulgação da iniciativa, sobretudo porque o Brasil é um país com uma larga extensão territorial, a artista plástica Lúcia Rosa considera que os catadores não enfrentam inúmeras dificuldades no seu trabalho. Até porque “nós propomo-nos ser um núcleo de trabalho auto-sustentável. É por isso que alguns se referem a nós, como uma economia criativa”. “Penso que a única dificuldade que temos é trabalhar no sentido de motivar, continuamente, a sociedade, o nosso grupo de interesse, para prestar mais atenção e aderir ao trabalho que temos feito”.
Moçambique
Naturalmente, como se podia prever, questionámos a artista que visitou o “País da Marrabenta” pela primeira vez em 2012 sobre as suas referências em relação ao país. No entanto, o que se percebeu é que, apesar de Moçambique possuir inúmeras figuras lendárias e notáveis no panorama artístico, desportivo, da literatura, do teatro, etc., as mesmas continuam pouco conhecidas no exterior. Aqui podemos citar os casos de Eusébio e Lurdes Mutola, no desporto, Marcelo Panguane, Ungulane Baka Khosa, Aldino Muianga, na literatura, Hortêncio Langa, José Mucavel, Zena Bacar, na música, Idasse Tembe, Roberto Chichorro, Noel Langa, Victor Sousa, nas artes visuais, por exemplo.
Por isso, apesar de ser verdade que a artista sentiu “muita proximidade entre mim e vários aspectos da cidade de Maputo, local que não difere da minha casa, sobretudo porque aqui encontro as raízes da minha origem e existência”, Lúcia Rosa teve que assumir como verdade que “não sei muito sobre Moçambique, por isso quando fui convidada pesquisei um pouco sobre o país”.
Refira-se então que foi igualmente no contexto da sua viagem a Maputo que a formação da sua irmã, Leila Hernandes, em História, bem como o facto de esta ter escrito um livro sobre a História de África (que se intitula África na Sala de Aula prefaciado pelo escritor moçambicano Mia Couto), lhe valeram a pena.
É que a artista tem algum domínio intelectual sobre o país. Mas o mesmo não trespassa muito a informação segundo a qual, “Moçambique, como todos os países africanos de expressão portuguesa, conquistou a sua independência há poucos anos, daí que ainda atravessa uma série de dificuldades sociais”, como considerou.
De facto, “além de Mia Couto que é um autor muito conhecido no Brasil, agora espero ler obras de José Craveirinha que também possui obras muito recomendadas no meu país por parte das pessoas que se dedicam à literatura africana”, diz.
Das similaridades aos encantos
Diante das similaridades que notou entre Maputo e diversas partes do Brasil, a artista plástica Lúcia Rosa não teve outra alternativa diferentes de assumir que “adorei estar em Maputo. De facto, Moçambique é um país irmão do Brasil porque, além da língua portuguesa que têm em comum – apesar das diferenças fónicas – os nossos povos têm as mesmas raízes ancestrais”. Na verdade, temos uma história que nos une. Basta recordar-se de que a maior parte da população negra brasileira tem origem em África para compreender o fenómeno. Como tal, “a gastronomia, os lugares (ruas entre outros espaços urbanos), a alegria dos povos, traduzem uma grande afinidade entre as duas nações”, reitera. De uma ou de outra forma, ela exalta a luta pela identidade cultural que os moçambicanos travam. “Está-se diante de um momento rico em que a literatura e as artes moçambicanas se estão a firmar no mundo”, considera.
Atenta aos objectivos
Colocando-se os encantos e as nostalgias à parte, o que se deve reconhecer como facto é que o Primeiro Encontro Africano de Livro de Cartão e a III Feira do Livro – contexto no qual se realizaram os feitos sobre os quais estamos a escrever – mostrou-se uma oportunidade ímpar para o incremento das cartoneras, uma iniciativa que pode ajudar muito nos países do terceiro mundo em vários aspectos da vida em sociedade. Foi por isso que Lúcia Rosa – uma figura que pelo facto de trabalhar com catadores não difere dos mesmos, o que, em certo sentido, dá-lhe algum orgulho – regressou para Brasil depois de estabelecer elos de trabalho com o país africano que encantou-lhe – Moçambique. Por isso, para si, existem condições objectivas para que os países onde existem editoras cartoneras o trabalho seja feito em rede. “Eu já deixei todos os meus títulos à disposição de Moçambique, de tal sorte que da nossa parte não há entrave nenhum. O trabalho em rede fortalece. O que é importante é que nos comuniquem sempre que publicarem obras de um autor nosso”.