Sexta-feira, dia 30, conversei por telefone com Daniel Toledo, do Jornal O Tempo, de BH. Papo descontraído que deu origem a esta matéria publicada hoje, dia 2 de outubro, e que pode ser acessada em http://www.otempo.com.br/busca/?busca=dulcin%E9ia%20catadora.
Segue a entrevista aqui no blog, com pequenas correções de informações que na conversa animada acabaram não ficando muito claras.
Arte que assume novos papéis
ENTREVISTA de Lúcia Rosa, do projeto Dulcinéia Catadora, dada a Daniel Toledo.
Publicada no Jornal OTEMPO em 02/10/2011
Há cinco anos, a artista Lúcia Rosa desenvolve o projeto Dulcinéia Catadora, coletivo artístico que reúne catadores de papel da cidade de São Paulo e já publicou mais de 60 livros em edições artesanais, passando por novos escritores e veteranos como Manoel de Barros e Jorge Mautner. Em conversa com o Magazine, ela falou sobre origens, realizações e perspectivas do projeto.
Qual foi o seu caminho até a criação do Dulcinéia Catadora? É um caminho muito longo, que passa por minha formação em letras, assim como por uma série de atividades artísticas que venho desenvolvendo desde os nove anos de idade. Aos 35, tomei a criação artística como atividade principal e acabei enveredando pelo caminho da escultura com materiais reutilizados, trabalhando muito com ferro e sucata. Foi nesse contexto que, em meio a uma pesquisa no bairro Pari (em São Paulo), me deparei com muitos catadores de papel, fui me inteirando sobre o universo deles e decidi realizar aquele trabalho com papelão. Logo depois, conheci o projeto Eloísa Cartonera, de Buenos Aires, que foi a grande inspiração do Dulcinéia Catadora, pois já trabalhava com livros artesanais produzidos em parceria com catadores de papel. Entrei em contato com eles, começamos a conversar e, alguns meses depois, eles foram convidados para participar da 27ª Bienal de São Paulo, quando montamos juntos uma oficina de livros artesanais com filhos de catadores da cidade. Depois de meses de conversa com o Movimento Nacional de Catadores, conseguimos que um grupo de filhos de catadores participasse diariamente da oficina-instalação na Bienal. Em janeiro de 2007 iniciamos com alguns desses jovens o Dulcinéia Catadora, que existe até hoje.
Quais foram as suas principais motivações para a criação desse projeto? Em primeiro lugar, acredito muito no potencial transformador das artes plásticas e, quando passei aqueles dois meses trabalhando na Bienal, vi que essa era a proposta artística que mais me preenchia. Trata-se de uma experiência que me levou a questionar se, talvez, esse trabalho não fosse o meu papel como artista, pois é nele que me vejo mais clara e profundamente. O mais importante, para mim, é estar junto com outras pessoas, me empenhar nesses processos, sejam eles artísticos ou não, relacionais ou não. Hoje em dia, esse é o meu trabalho.]
Em linhas gerais, como funcionava o projeto em sua origem e quais foram as principais mudanças de lá pra cá? Pouco tempo depois da Bienal, fizemos um trabalho que já era o Dulcinéia Catadora e lançamos nosso primeiro livro, "O Sarau da Cooperifa", que reunia poemas dos trabalhadores da Cooperativa dos Poetas da Periferia (Cooperifa). Depois disso, conseguimos um local para trabalhar e durante quatro anos funcionamos de forma independente em um espao cedido pelo Aprendiz, na Vila Madalena, sempre produzindo e vendendo livros, realizando palestras e oficinas, entre outras atividades. A partir do início deste ano, entretanto, passamos a funcionar nas próprias cooperativas de catadores, e minha ideia é que o projeto se torne itinerante, passando pelas diversas cooperativas que existem na cidade e fazendo com que os catadores de cada uma delas se apoderem do projeto. Assim que o grupo se sentir preparado para receber pedidos, produzir os livros e vendê-los, ficarei só como apoio e partirei em direção a outro grupo.
Como se dá o contato com os escritores e a distribuição dos livros? Hoje em dia é bem simples pois muitos deles já reconhecem a seriedade do nosso trabalho. E o leque de autores varia muito: algumas vezes convidamos autores que já têm uma carreira feita, outras, recebemos e-mails de escritores, sejam experientes ou não, que gostariam de ter seus livros publicados com capa de papelão. Além disso, sempre tentamos ir atrás de catadores que escrevem, e costumamos combinar o lançamento dos livros de autores mais conhecidos com outros, de autores iniciantes, justamente com a intenção de quebrar hierarquias. Em geral, fazemos os lançamentos com 50 ou 100 exemplares de cada livro, vendidos ao "preço Dulcinéia", de R$ 6, e depois disso continuamos imprimindo conforme chegam os pedidos.
Além de publicar livros, vocês têm realizado intervenções urbanas. O que te motivou a expandir essa atuação? Na minha visão, trabalhar com catadores dentro de uma oficina é importante, mas é muito limitado. A rua é o lugar deles, é ali que estão os papéis, então faz muito sentido levar esse trabalho para a rua. Como artista, a primeira coisa que passou pela minha cabeça foi criar trabalhos que dessem mais visibilidade para os catadores, que são personagens invisíveis da cidade. Além disso, acabamos de fazer alguns bichos com uma escritora e ilustradora portuguesa, e nossa intenção é justamente essa, trabalhar sempre juntos com outros criadores, para que haja essa troca de experiências e repertórios entre aqueles que participam do projeto.
Dentre os trabalhos que atualmente estão em andamento, o que você destacaria? Ao longo dos anos, fomos desenvolvendo formatos bastante diferentes. Começamos com livros de contos e poesias, passamos pelos pocket books, assim como pelos livros infantis. Como a tendência do projeto é sempre se abrir, começamos agora a trabalhar também com fotografias e desenhos no miolo dos livros. O primeiro livro dessa série foi feito com trabalhos do Fábio Morais, e agora estamos finalizando um livro inédito do Paulo Bruscky - um grande artista que tem tudo a ver com o projeto. Nessa série, resolvemos fazer uma edição fechada de 100 livros, todos assinados. E para que a impressão respeitasse o trabalho visual dos artistas, esses livros têm sido vendidos por R$ 12 - surgindo como uma exceção ao nosso preço habitual.
Na sua visão, quais são os principais resultados sociais do projeto? No caso dos jovens, vejo que o Dulcinéia acaba despertando os meninos para outros mundos, outras possibilidades de vida e de atuação profissional. As catadoras adultas, por outro lado, provavelmente continuem trabalhando nas cooperativas, mas encontram no projeto um espaço de arejamento em relação à rotina muito cruel que vivem de segunda a sexta-feira. Ao terem contato com artistas como o próprio Paulo Bruscky, que encontra na rua seu material de trabalho, elas passam a enxergar o lixo com outros olhos, além de conseguirem uma renda extra com o projeto, o que, é claro, produz nelas algum tipo de satisfação.
Quais são, nesse momento, os principais desafios do Dulcineia Catadora? Em certo sentido, acabo me envolvendo muito na produção, e a distribuição se torna o grande desafio. Atualmente temos alguns pontos de distribuição, como a Mercearia São Pedro, na Vila Madalena, e a Galeria Vermelho, que é um ambiente totalmente diferente, onde se trabalha com arte contemporânea de ponta. Além disso, há muitas vendas por e-mail, e estamos sempre em busca de novos pontos de venda, mas sem cair em livrarias ou no mercado editorial, pois esse não é a nossa proposta.
Como você situa o projeto em relação a campos como a assistência social, o ativismo e a arte? Para mim, trata-se claramente de uma proposta artística, ainda que seja um modelo pouco comum no Brasil. Não somos uma ONG, não se trata de assistência social, mas, por outro lado, há sim uma relação forte com o ativismo. Vejo, por exemplo, que o projeto ganhou muita força quando passamos a trabalhar dentro das cooperativas, pois, assim, se lança uma outra visão sobre os materiais e as pessoas que trabalham por lá.
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